27 maio 2011

obrigado Padre – eu estou bem

Ontem - obrigado Senhor!
Eram as 3 horas da tarde quando eu, no dia 16 de Abril de 1985, descia as escadas do avião que de Lisboa me trouxe ao aeroporto então chamado de Jan Smuts, em Johannesburg. Foi uma viagem longa sobre o Atlântico, mais de 12 horas, devido ao boicote que impedia o regime racista da África do Sul de usar aquilo que a ninguém pertence mas que todos se arrogam, o espaço aéreo. A temperatura era amena mas o  sol que me acolheu era já amarelado e algo distante, pelo aproximar-se do Inverno neste país a sul do Equador. Ao descer aquelas escadas  que, da Europa do meu passado, me conduziam ao futuro em África, fui-me dizendo baixinho "este é agora o meu país, aqui está o meu futuro, este será o meu povo – obrigado, Senhor!"

Eram os tempos do "big onslaught", a grande turbulência politica, social e humana – opressão, sofrimentos e mortes, ataques, destruição e espezinhamento da dignidade – que iria culminar nove anos mais tarde na libertação da maioria oprimida com o acesso á democracia e, consequentemente, ao poder politico. Mas o estrago estava feito, e as consequências iriam permanecer durante tempos incalculáveis: uma sociedade estruturalemente dividida em que as pessoas não tinham nome mas apenas a côr da pele.

Foi esse o mundo para o qual fui enviado hà 26 anos. Um mundo onde a Igreja, para além de ser extremamente minoritária, 6% da população, estava etiquetada como o "perigo romano" e se colocava ostensivamente do lado da maioria oprimida. Uma Igreja que se encontrava a ser ninguém no meio do imenso mar de igrejas e grupos religiosos de toda a espécie, autoproclamando-se como os verdadeiros descendentes do Nazareno pelo revestimento de culturalismo e africanidade.

Os missionários da Consolata, não obstante o número reduzido, dedicavam-se com afinco á evangelização entre os mais desfavorecidos nos Bantustões e nas periferias urbanas: criavam oportunidades, iniciavam comunidades, formavam animadores, abriam novas presenças. A inspiração vinha-lhes do Fundador – promoção humana e evangelização – e a presença numa única diocese dava-lhes unidade e determinação. O carinho e apoio do bispo diocesano foralecia-os nas dificuldades: houve quem foi expulso, quem foi esfaqueado e quem, como eu, se viu confrontado com armas militares apontadas no coração da noite.

Era esse o mundo exaltante da Missão, o mundo que dava corpo aos meus sonhos missionários? Celebrei a minha primeira Eucaristia de Domingo com sete pessoas – sim sete pessoas! O meu primeiro domingo em "terras de Missão"…"vossos pensamentos não são Meus".
Depos foi a língua, nove longos meses de silêncio e escuta, de incompreensões e frustrações… o tempo da gestação, o tempo para nascer de novo, para abrir os olhos ao mundo que Deus me oferecia, o tempo para dar espaço ao 'grão de mostarda', o tempo de recomeçar com uma nova identidade, aberta ao tempo e ao ritmo de Deus.

Eternidade - obrigado, eu estou bem!
Visitei a Thembi numa segunda-feira a meio da manhã: era bela – os olhos vivos e inteligentes iluminavam-lhe a face arredondada e afável; estava adoentada, tossia muito mas, dizia ela, é uma coisa breve pois daí a três dias tinha o exame final de enfermagem. Tinha que ficar boa antes desse dia, tinha mesmo de ficar boa e fazer o exame: aos vinte e um anos estava ansiosa para devolver aos pais o fruto das suas poupanças e a alegria duma vida com futuro. Conversámos – "porque deixaste a tua família e vieste para este país?" – rezámos: "vim para que tenhais a vida e a tenhais em abundância". Quinta-feira era o dia do exame final. Thembi não foi á Universidade fazer o exame. O local tinha mudado: Thembi fez o exame final em frente de Deus. A sida colhera outra das suas inúmeras vítimas: vinte e um anos, um futuro cheio de sonhos e ambições, um final inesperado, abrupto – final. E uma vez mais o missionário sente o amargo da frustração e da não-justiça – porquê? Já me rendi á evidência de não ter palavras nestas situações. Fica apenas a presença, o olhar – é tão profundo o olhar dos jovens naqueles últimos dias… Fica, isso sim, a evidência última da Fé expressa na Oração, á mistura com imenso sofrimento e impotência... São milhares cada dia: até ontem sem dignidade, oprimidos pelo regime racista; hoje sem vida, destroçados pelo monstro da sida: sonhos truncados, juventude e beleza interrompidas, futuro irremediavelmente adiado; ficam as mãos apertadas, gestos e palavras com sabor a eternidade: "obrigado Padre, foi bom ver-te – eu estou bem"!

3 comentários:

Anónimo disse...

Bem haja pela partilha... Foi assim á 26 anos, e hoje o que mudou? Talvez seja uma realidade diferente, mas no fundo, talvez igual. Talvez sem armas militares apontadas, mas com outros perigos sempre a rondar.
Que o Bom Deus o proteja e ampare sempre, e a certeza da minha/nossa oração.

PAZ E BEM SEMPRE.

Anónimo disse...

Bem haja pela partilha... Foi assim á 26 anos, e hoje o que mudou? Talvez seja uma realidade diferente, mas no fundo, talvez igual. Talvez sem armas militares apontadas, mas com outros perigos sempre a rondar.
Que o Bom Deus o proteja e ampare sempre, e a certeza da minha/nossa oração.

PAZ E BEM SEMPRE.

Anónimo disse...

Apenas para dizer algo que me esqueci.

Obrigada Padre, eu estou bem.

PAZ E BEM